CASO CABINDA: Incompetência ou falta de vontade?

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Contumácia suicidária de João Lourenço adia solução política para exclave de Cabinda. Cada vez mais me convenço que João Lourenço é um péssimo líder, porque não lê os sinais dos tempos e prefere embarcar para uma contumácia suicidária.


Por Raúl Tati, docente universitário e antigo deputado à Assembleia Nacional

O diferendo de Cabinda é um assunto tão estratégico que merecia um destaque no Estado da Nação. Não pode ser tratado intramuros e quase em surdina entre camaradas quando na prática o seu líder assumiu desde o princípio um mutismo irritante e uma estratégia de uma solução militar de rendição ou aniquilamento das bolsas de guerrilha da FLEC ainda activas no território (…)

O Dr. Virgílio Fontes Pereira, coordenador do grupo de acompanhamento do secretariado do Bureau Político do MPLA para a Província de Cabinda, deixou um emprazamento – sabe mesmo à provocação – no acto da tomada de posse da nova Primeira-Secretária do MPLA em Cabinda, ocorrido no sábado, 22 de Outubro de 2022. Ao presidir o acto de encerramento da conferência provincial do seu partido, o político terá dito o seguinte: «Eu acho que é absolutamente necessário que o partido na Província partilhe reflexões com a direcção central do partido para que se obtenha no quadro da actual Constituição uma solução político-administrativa para o caso específico de Cabinda (…). O mais importante é encontrar-se a fórmula desejável e fundamental em que se poderá obter maiores consensos possíveis em relação ao modelo que nós queremos, para que Cabinda possa desenvolver-se e ter um figurino institucional, no quadro da actual Constituição da República, a contento dos interesses de Angola e do povo dessa região, em particular.» Sendo esta uma matéria política sensível, e por ser matéria de interesse publico, vou aqui partilhar algumas reflexões avulsas.

Quem é Virgílio Fontes Pereira? Fontes Pereira é uma figura de peso do MPLA, actualmente membro do BP e líder da bancada parlamentar do MPLA. Foi no seu consulado como Ministro da Administração do Território que o governo de Angola arquitectou o famigerado Memorando de Entendimento do Namibe (1 de Agosto de 2006). Depois de tudo cozinhado pela Casa Militar do PR, Fontes Pereira foi chamado para assumir a figura de “eminência parda” da parte governamental para levar o cardápio à mesa de negociações com o grupo do Bento Bembe. A sua presença serviu para camuflar a progenitura castrense do acordo, dando-lhe um rosto mais político. Nos últimos anos, VFP tem sido o coordenador do grupo de acompanhamento do secretariado do BP do MPLA para Cabinda. Por conseguinte, não estamos diante de um ´´debutant´´ em relação ao dossiê Cabinda. Ao tocar nesse assunto, o político deixa uma confissão de que o seu partido está em falta para com os cabindas. Provavelmente foi esta a sua interpretação do recado dos cabindas nas últimas eleições. E ainda bem!

Contextualização. O discurso acontece no contexto do desaire eleitoral do MPLA em Cabinda onde perdeu copiosamente para a UNITA. No rescaldo do pleito eleitoral tive a oportunidade de publicar a minha opinião sobre as causas da derrota do MPLA em Cabinda. O MPLA sempre defendeu a tese de que as reivindicações políticas dos cabindas tinham na sua base a falta de empreendimentos de impacto socioeconómico. Foi gizada então a estratégia de canalizar para Cabinda projectos de vulto com o intuito de esvaziar o ímpeto do fenómeno independentista nos autóctones. O PR João Lourenço pôs em marcha esse plano multimilionário com vários despachos presidenciais, a destacar: 1) Despacho presidencial n.111/20, de 7 de Agosto, contratação simplificada no valor de 33.600.000.000.00 kz (Trinta e Três Mil Milhões, Seiscentos Milhões de Kwanzas) para a construção de 500 apartamentos sociais e infraestruturas nos quatro Municípios; 2) Despacho presidencial n.20/21, de 1 de Março, contratação simplificada no valor de 250.000.000.00 kz (Duzentos e Cinquenta Milhões de Kwanzas) para a construção da circular externa no Município de Cabinda; 3) Despacho presidencial n.54/21, contratação simplificada em favor da empresa israelita MITRELLI, no valor de USD 592.560.637.00 (Quinhentos e Noventa e Dois milhões, Quinhentos e Sessenta Mil e Seiscentos e Trinta e Sete dólares americanos) para construção de centralidades com quatro mil habitações no Cunene, Bengo e Cabinda; 4) Despacho presidencial n.38/22 de 21 de Fevereiro, contratação simplificada no montante de USD 250.000.000.00 (Duzentos e Cinquenta Milhões de Dólares) para a construção do novo aeroporto de Cabinda; 5) Despacho presidencial n.4/22, de 6 de Janeiro, contratação simplificada no montante de 2.500.000.000.00 (Dois Mil Milhões e Quinhentos Milhões de Kwanzas) para a construção de 43 tanques de água com capacidade de 100 metros cúbicos; 6) Despacho presidencial n.27/22, de 7 de Fevereiro, contratação simplificada no valor de 12.228.614.707.00 (Doze Mil Milhões, Duzentos Milhões e Seiscentos e Catorze Mil e Setecentos e Sete Kwanzas) para a construção da nova ponte sobre o rio Lucola, 500 casas sociais e o cemitério de Cabinda; 7) Despacho presidencial n.4/22, de 6 de Janeiro, contratação simplificada no valor de 2.107.940.000.00 Kz (Dois Mil Milhões, Cento e Sete Milhões e Novecentos e Quarenta Mil Kwanzas) para a construção da drenagem do canal de acesso, bacia de manobras e berços de acostagem do novo quebra-mar e cais de Cabinda; 8) Despacho presidencial n.4/22, de 6 de Janeiro, contratação simplificada no valor de 75.000.000.00 (Setenta e Cinco Milhões de dólares americanos) para a construção de um aterro sanitário; 9) Decreto-lei n.7/19, de 24 de Abril, sobre o Regime Tributário Especial para Cabinda e aprovação do código de imposto sobre o valor acrescentado (IVA); 10) Aprovação de um financiamento privado de USD 220.000.000.00 (Duzentos e Vinte Milhões de dólares americanos) – através da Gemcorp – para a construção da refinaria de Cabinda com a previsão da conclusão da primeira fase antes das eleições, isto é, julho de 2022. Com esses despachos, no primeiro semestre de 2022, ano eleitoral, vários projectos foram postos em andamento num frémito sem precedentes. O Terminal Marítimo de Passageiros e o Hospital Geral de Cabinda foram inaugurados pelo líder do MPLA durante a sua viagem da pré-campanha, mas tudo isso não convenceu os Cabindas e a resposta foi dada nas urnas: MPLA FORA!

Análise: status quaestionis – As palavras do VFP relançam o debate sobre o diferendo de Cabinda, mormente sobre a necessidade de uma solução imediata. Por uma questão de honestidade intelectual, acolho com algum agrado essa provocação. Primeiro, porque teve a hombridade de tocar no assunto e, em segundo lugar, porque há nele um aspecto crucial, sempre evitado em statements do regime: uma solução político-administrativa! Durante os meus cinco anos no Parlamento angolano, não me cansei de dizer que esta era uma das vias possíveis para pensar e discutir Cabinda. Os projectos são sempre bem-vindos e não são um favor para os Cabindas. Angola deve muito mais a Cabinda e enquanto assume o ónus de administrar o território ora em disputa obriga-se a trabalhar pelo bem-estar dos seus habitantes. Mas a definição de um estatuto político-administrativo para Cabinda adequado às suas especificidades históricas, geográficas e culturais devia estar no centro das preocupações de quem governa. Era isso que o povo Binda queria ouvir durante a campanha. Enquanto o partido UNITA, pela enésima vez, assumiu essa questão como estandarte da sua campanha em Cabinda, o MPLA fez do problema um tabú. O PR João Lourenço nunca se pronunciou sobre o problema durante o seu mandato. Nem o fez durante a campanha pelo menos para uma captatio benevolentiae. No seu primeiro discurso sobre o estado da nação voltou a colocar o acento nos projectos para Cabinda, silenciando a mãe de todas as questões. Cada vez mais me convenço que João Lourenço é um péssimo líder porque não lê os sinais dos tempos e prefere embarcar para uma contumácia suicidária. O diferendo de Cabinda é um assunto tão estratégico que merecia um destaque no estado da nação. Não pode ser tratado intramuros e quase em surdina entre camaradas quando na prática o seu líder assumiu desde o princípio um mutismo irritante e uma estratégia de uma solução militar de rendição ou aniquilamento das bolsas de guerrilha da FLEC ainda activas no território, acções sistemáticas de repressão policial e ´´covert actions´´ levadas a cabo pelos órgãos de inteligência contra as expressões autonomistas no seio da sociedade civil.

A solução político-administrativa para Cabinda foi discutida, en passant, no Parlamento angolano durante os debates da revisão pontual da Constituição na última legislatura. A intenção de alterar o artigo 213º da CRA que dispõe que a organização democrática do Estado ao nível local se estrutura com base no princípio da descentralização político-administrativa mereceu uma acesa discussão. A proposta do Executivo era no sentido de se retirar a descentralização política, mantendo apenas a descentralização administrativa, por aquela dar azo a supostas confusões. Durante o debate, os deputados entenderam não ser conveniente essa alteração por ser uma janela para dar solução ao problema de Cabinda. Assim ficou plasmado na revisão constitucional com o seguinte teor: «A organização democrática do Estado ao nível local estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa, que compreende a existência de formas organizativas do poder local, nos termos da Constituição e da lei.» Mesmo com essa componente política plasmada na Constituição, os matreiros do MPLA no seu Manifesto eleitoral 2022, no domínio da Desconcentração e Decentralização da Administração Pública, propõem o seguinte: «iii. Trabalhar na busca de um modelo de gestão territorial, capaz de salvaguardar uma maior autonomia administrativa e económica para a Província de Cabinda». Autonomia política? Niente!

A solução do problema de Cabinda, na perspectiva do regime, passaria por arranjos constitucionais tendentes a buscar uma figura jurídica para acomodar os interesses dos Cabindas e salvaguardar o Estado unitário. No entendimento dos Cabindas e de estudiosos da matéria (Cf. MAIA, Catherine & KOLB, Robert, Le Statut International de la Provence Angolaise du Cabinda a La Lumiere du Droit International Public, 2015), o problema de Cabinda é meta-constitucional por ser anterior à Constituição de Angola e por se definir como um diferendo de Direito Internacional Público com analogia ao diferendo do Saara Ocidental de que Angola se tornou arauto nas Nações Unidas. O posicionamento diplomático do governo angolano ao defender o direito do Sahara Ocidental à autodeterminação e independência suscita o princípio de reciprocidade em favor do Reino do Marrocos que nos mesmos moldes poderia levantar o problema de Cabinda na ONU. Entretanto, todas as vezes que o governo de Angola levanta o problema do Saara, os Cabindas sentem-se encorajados a baterem-se pela mesma causa dos chamados ´´Territórios não-autónomos´´. O Saara não é o último território não-autónomo, nem é a última colónia em África. Cabinda reclama os mesmos direitos na medida em que continua a ser um território em disputa (Cf. CARVALHO, Sedrick, (org.), Cabinda – Um Território em Disputa, 2018).

Quando se fala de uma solução para Cabinda, para evitar quaisquer distrações, temos de ir ao fundo da questão: «Os cabindas não reivindicam nem prosseguem favores, excepções, privilégios ou estatutos especiais: pedem tão-somente que os princípios gerais e universais reconhecidos genericamente e abstratamente a todos os povos pela comunidade internacional lhes sejam também reconhecidos e aplicados; à semelhança dos outros povos do planeta» (LUEMBA, Francisco, O Problema de Cabinda Exposto e Assumido à luz da Verdade e da Justiça, 2008, p.15).

O direito à autodeterminação faz parte daqueles direitos entendidos como norma imperativa (jus cogens). Segundo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, define-se como norma imperativa «aquela norma aceite e reconhecida pela comunidade dos Estados no seu todo enquanto norma que não permite qualquer derrogação e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com o mesmo carácter» (art.53º). Neste sentido, o direito dos povos a disporem de si mesmos é reconhecido na doutrina e na jurisprudência internacional como conditio sine qua non para o usufruto e o exercício de todo o conjunto de direitos humanos da primeira, segunda e terceira geração, segundo a classificação didáctica do jurista Karel Vasak, em 1979. De recordar que a sua classificação está baseada no tripé da revolução francesa: liberdade – igualdade – fraternidade.

Situação interna do movimento independentista. Passadas seis décadas desde que os Cabindas se fizeram ouvir nas Nações Unidas (1960), reivindicando a sua independência de Portugal, e passados quase cinquenta anos da sua anexação a Angola no Alvor (1975), os movimentos cabindas representam hoje uma das mais antigas resistências em África e no mundo. Apesar de tantos percalços, nunca se perdeu de todo o farol da resistência que é o seu direito à autodeterminação. Durante o seu percurso sinuoso, a resistência cabindesa teve uma expressão político-diplomática, cívica e militar. Disseminaram-se grupos e facções à volta do mesmo farol, cada qual com a sua visão e estratégia de luta, mas nunca confusos ou desmobilizados em relação ao objectivo último da luta. Como dizia o antigo escritor panafricanista queniano, Tom Mboya, ´´The problem is not if we want independence, but how to get it´´ (não se coloca a questão se queremos independência, mas como alcançá-la). Nas suas estratégias de suscitação, o regime tem conseguido adiar uma solução viável do problema através da cooptação de cabindas renegados e perversos. O adiamento de uma solução negociada do diferendo tem dado azo a expressões mais radicais no seio do movimento independentista. O entendimento é que o MPLA é o principal obstáculo para uma solução justa, credível e duradoira.

Concluindo

O diferendo de Cabinda requer hoje uma reflexão ponderada e iniciativas concretas que deverão passar pela concertação das forças vivas cabindesas e pelo envolvimento internacional. Se o Saara tem padrinhos e porta-estandartes como Angola, Cabinda também pode tê-los. O problema de Cabinda não representa apenas um passivo do processo da descolonização. É um problema que tem toda a viabilidade para uma solução justa. Nada está perdido. Como se diz na gíria, é uma causa que tem pernas para andar. O problema é que não basta ter pernas, é preciso escolher o caminho certo. Todos os meus contactos internacionais sugerem o caminho acenado que, embora laborioso, é auspicioso e exequível. Portanto, seria um erro fazer de um discurso de circunstância uma tábua de salvação. O mais provável é que tudo o que foi dito por VFP não passará de mais uma treta sem qualquer consequência como tantos outros dislates sobre Cabinda ao longo destes 47 anos da vigência do status quo. O tempo dirá: tempus excelsus iudex est (o tempo é o maior juiz).

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