MACAU FICA AO LADO: A língua portuguesa em Macau após 1999 e a sua expansão

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A China fica ao lado, título do livro de Maria Ondina Braga, em que a escritora descreveu vividamente a cultura chinesa que ela enxergou de perspetiva portuguesa na terra de Macau. Quando Maria Ondina Braga deixou o seu torrão natal e se aventurava em Macau ensinando a língua portuguesa em Colégio Santa Rosa de Lima (1961-1965), esta pequenina cidade já tinha testemunhado a dupla presença de português e de chinês há centenas de anos (desde 1553).


Por Huang Lin

Hoje em dia, Macau encanta-nos, por um lado, pelos cartazes gigantescos de marcas luxuosas, pelos centros de shopping requintados, pelo arranha-céu de Grande Lisboa como ananás monstruoso, pelas pessoas que saltaram gritando do topo da Torre de Macau; por outro lado, pelo anúncio de paragens a quatro idiomas (cantonês, mandarim, português e inglês) nos autocarros, pelas placas de rua com nomes de grandes figuras portuguesas, pelas calçadas e azulejos, pelas casas de estilo português, pelos exóticos nomes dos pratos e pelas pessoas com aparência portuguesa falando fluentemente o cantonês, etc. Na verdade, sendo uma cidade multilingue e multicultural, Macau é sempre conhecido como um ponto de convergência das culturas orientais e ocidentais.

Apesar disso, durante quase quatro séculos de governação portuguesa em Macau, o português tem sido uma língua falada por uma minoria muito restrita de população. Evidencia-se uma tardia promoção, só no segundo meado do século passado, das atividades de ensino de escala considerável e a vasta divulgação da língua portuguesa destinadas aos falantes não nativos. À véspera da transição de soberania de Macau, havia receios de que a língua portuguesa e a cultura lhe inerente fossem desmoronadas e desaparecessem para sempre, por causa do regresso dos portugueses de número significativo. Porém, exatamente pelo contrário, é constada na Lei Básica a posição de o português ser uma das línguas oficiais da Região Administrativa de Macau (RAEM), concedendo assim privilégio à preservação da língua portuguesa. Hoje em dia, é visto que a língua portuguesa e a língua chinesa são utilizadas em todos os impressos, formulários e documentos análogos editados pelos serviços públicos de Macau.

Segundo o princípio “Um país, dois sistemas”, o sistema jurídico da RAEM mantém-se inalterado, pertencendo à família do Direito continental como estava antes da transição de soberania. Então existe inevitavelmente, a necessidade de tradução dos artigos das leis. À medida que a estratégia de “três escritas e quatro idiomas” tem sido implementada em Macau, a convivência dos quatro idiomas torna ainda mais evidente nas escolas, especialmente depois do lançamento de Políticas do Ensino da Língua na Área do Ensino Não Superior da Região Administrativa Especial de Macau (2008) pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). No intuito de formar professores qualificados para as escolas, entre os anos letivos 2013/2014 e 2017/2018, DSEJ implantou o “Plano de Financiamento para a Frequência de Cursos de Docência de Português e de Línguas”, patrocinando os alunos de Macau a frequentar, em Portugal, o curso de licenciatura e de Mestrado em educação e aquisição de segunda língua. Além disso, há ainda instituições educativas não pertencentes ao sistema formal, por exemplo, o Instituto Português do Oriente (IPOR) e o Centro de Difusão de Línguas da DSEJ, que oferecem ao público cursos de formação da língua portuguesa.

No ensino superior, existem em Macau, no total, dez instituições públicas e privadas que possuem a disciplina de português ou que incluem esta no seu plano curricular, entre as quais se destacam as duas principais instituições oficiais: a Universidade de Macau (UM) e o Instituto Politécnico de Macau (IPM). A Universidade de Macau nasceu em 1981 como uma universidade privada designada Universidade da Ásia Oriental. Em 1988, foi comprada pelo governo de Macau e virou Universidade de Macau em 1991. Atualmente, o Departamento de Português da Universidade de Macau oferece curso de licenciatura em Estudos na Língua Portuguesa; mestrado em Estudos de Tradução, Linguística Aplicada, Aquisição de Segunda Língua e Literatura; e cursos de doutoramento em Linguística e Estudos Literários e Interculturais. Em 2013, a Faculdade de Direito criou o curso de Mestrado em Direito, especialização em tradução jurídica e os cursos de licenciatura da Faculdade de Direito exige obrigatoriamente a aprendizagem de português. A UM estabelece ativamente, com universidades da China continental, cooperações relativas ao ensino de português, dentre as quais vale salientar a cooperação com a Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim (Beiwai), uma das melhores Universidade de ensino de português da China. Os alunos de Beiwai, no terceiro ano, podem escolher frequentar o curso anual na Universidade de Macau, com todas as despesas pagas pela Fundação Macau. Em retorno, Beiwai delega, a cada ano, um/a professor/a a lecionar português na UM por um ou dois anos. A UM também organiza, todos os anos, curso de verão dedicado à aprendizagem da língua portuguesa e tem acolhido tanto alunos da China continental, como também amateurs dos demais países da Ásia Oriental tais como a Coreia do Sul, a Vietnam e o Japão. O IPM, por sua vez, além dos cursos curriculares acima referidos, foi recém-criado, em dezembro 2019, o Centro Internacional Português de Formação em Interpretação de Conferência em cooperação com a Directorate-General for Interpretation da União Europeia. Resumindo, Macau faculta um solo fértil para alguém que pretenda aprender português, em particular para os residentes na Zona de Grande-Baía.

Tudo isto é um resultado fomentado pela primeira “Conferência Ministerial de 2003 do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa”, em que se afirmou a decisão de intensificar as relações económicas entre a China e a comunidade de língua portuguesa e de promover o papel de Macau como uma plataforma. Na tal conferência, foi assinado o “Plano de Ação para a Cooperação Económica e Comercial”, declarando um aumento de procura de pessoas que falem, ao mesmo tempo, chinês e português.

Macau é uma plataforma não só para a cooperação económica e comercial, mas também para o intercâmbio literário e cultural. A maioria dos leitores chineses começam a conhecer Fernando Pessoa pelo Livro de Desassossego, traduzido em 1996 pelo escritor chinês Han Shaogong. Foi uma tradução indireta feita a partir de inglês. Muito mais cedo do que isto, em 1988, o Instituo Cultural de Macau já publicou uma Antologia de Fernando Pessoa traduzida por Zhang Weimin diretamente de português, em que introduziu, para o mundo chinês, a poesia de Fernando Pessoa e dos seus principais heterónimos, ensaios de Fernando Pessoa e umas páginas de Livro de Desassossgo. Adicionalmente, o Instituo Cultural de Macau promoveu, na década de 1990, a publicação duma série de traduções da literatura de língua portuguesa, que é a “Biblioteca Básica de Autores Portugueses”, albergando 27 obras literárias de língua portuguesa. Graças a essa série, A Trança Feiticeira de Henrique de Senna Fernandes ficou a ser conhecido através do filme homónimo (1996) adaptado. Todos os anos, Macau receciona escritores com o Festival de Literatura “Rota das Letras” e sempre com a presença de escritores de língua portuguesa. Em 2018, realizou-se o 1º Fórum de Tradutores: a Tradução Literária entre o Possível e o Impossível, em que os tradutores, académicos em estudos de tradução da China e de língua portuguesa, compartilharam os seus trabalhos de tradução e investigações nesta área. No Fórum se integrou ainda uma sessão de Cerimónia de premiação do 1º Concurso de Tradução Literária Chinês-Português, em que sobressaíram Os Analectos (2012) de Confúcio, tradução feita por Giorgio Sinedino, tradutor e sinólogo de origem brasileira que vive agora em Macau e Nocturno em Macau (2017) de Maria Ondina Braga, tradução feita por duas tradutoras chinesas experientes, Wei Ling e Zhang Wenjun. Todos os anos, as pessoas conhecem melhor a língua de Camões por via da comemoração do Dia de Portugal em 10 de junho e as pessoas da comunidade portuguesa que vivem em Macau divertem com muita euforia nas festas da Lusofonia.

Macau é singularmente marcado pelos casinos, ou melhor dizendo, é iluminado pelos casinos, não apenas de sentido físico, que as luzes dos casinos descompõem o noturno de Macau, também de sentido figurativo, que a esmagadora maioria da economia desta cidade é sustentada pelos casinos. Existem queixas de que os casinos aceleraram o ritmo de vida, derrotaram as culturas tradicionais e histórias e elevaram dramaticamente o preço das casas até a um nível insuportável, mas pensando de lado positivo, é também justamente por causa dos impostos que os casinos contribuem é que os alunos podem sentar no novo campus da Universidade de Macau apreciando as luzes dos casinos. Construída numa ilha, com três lados cercados pelo muro, e um rio em frente, a UM fica numa parte isolada da ilha de Hengqin, ligada apenas por um túnel subaquático, criando um espaço ideal para a aprendizagem tanto da língua portuguesa como conhecimentos de outras áreas, uma república dos professores e alunos. Por ser isolada, mantém-se o sossego necessário para trabalhos académicos, mas ao mesmo tempo, a gente cá não perde a ligação ao mundo real, só que fica de uma distância, observando e pensando com mais sensatez.

O melhor lugar no campus para assistir ao espetáculo de iluminação dos casinos é a biblioteca. No seu segundo andar, tem uma zona com paredes de vidro voltadas ao rio, portanto, se alguém se sentar ali, terá uma maravilhosa vista sobre a cidade de Macau iluminada. Pelo vidro, vê-se a noite esfarrapada pelas luzes resplandecentes e depois acolhida pelas águas do rio. O vidro separa o materialismo deslumbrante da simplicidade sossegada e o rio faz com que Macau, essa cidade de sonhos, fique a outro lado do novo campus da Universidade de Macau na ilha de Hengqin.

Macau e Hengqin são terras extremamente próximas, sobretudo depois da construção do novo campus da Universidade de Macau. Macau encontra-se na intersecção do duplo ciclo económico da China, por isso, é um ponto crucial tanto para o ciclo interno como para o ciclo externo. Baseado no posicionamento de desenvolvimento de “Um Centro, Uma Plataforma, Uma Base”, o Governo da RAEM tem-se empenhado em estreitar a colaboração com Guangdong e as nove cidades da Grande Baía, sobretudo com Zhuhai (Hengqin é um distrito do município de Zhuhai). Desde 2019, a cada ano, organiza-se a “Cimeira dos Empresários de Macau e Zhuhai”. Ao passo que os dois governos da China e da RAEM vão implementando políticas de construir uma comunidade entre Hengqin e Macau, recomendando que os residentes de Macau comprem casas em Hengqin e ao mesmo tempo, aperfeiçoando as infraestruturas de Hengqin e construindo escritórios arranha-céus que visam a atrair novos negócios. A ilha de Hengqin é considerada quase como uma mina de inúmeras riquezas a ser explorada. Dado este pano de fundo, vê-se uma necessidade de que os dois vizinhos se conheçam. No entanto, curiosamente, as pessoas de Hengqin, sobretudo as da nova geração, têm poucos conhecimentos sobre Macau e o papel que esta Região Administrativa Especial desempenha para o desenvolvimento do país e da região e para a sua própria vida. O que lhes interessam mais é apenas as lendas acerca de casino: quem ganha uma vida riquíssima ou quem perde num piscar de olhos bilhões de bilhões até um dedo por causa dos jogos.

Dado facto disso, a Escola Portuguesa de Macau (EPM), a única escola de Macau que segue o sistema educacional de Portugal, estabeleceu com a Primeira Escola Primária de Hengqin em 2018, um protocolo de cooperação, com professores delegados pela EPM a dar aulas de português opcionais. Quanto à escola de Hengqin, sito perto da fronteira entre Hengqin e Macau, justamente no outro lado do muro oeste da UM, é um bom ponto de partida de onde se emite informações sobre Macau, os países da língua portuguesa e sobre a própria língua, desde as crianças para os seus pais, desde os pais para os amigos deles… As aulas de português numa escola primária de Hengqin, embora existam de sentido mais simbólico em vez de pragmático, podem servir como um bom instrumento de propaganda das políticas de cooperação entre a China, a RAEM e os países da língua portuguesa. No primeiro semestre do ano letivo de 2019-2020, vieram dois grupos de média que gravaram a cena de aula e passaram-na na televisão e no jornal. Neste ano, a escola também está a fazer um programa sobre as aulas de português em Douyin, a versão chinesa de Tik Tok.

É bem possível que as crianças não vão falar muito bem o português com apenas duas aulas por semana, mas é decerto que esta disciplina vai alargar os seus horizontes sobre o futuro, despertar a sua consciência de que no outro lado do muro, há um mundo magnífico e fazê-los ter um pouco mais conhecimentos sobre Macau e a comunidade portuguesa, oferecendo-lhes novas perspetivas sobre o modo de viver. Com as aulas opcionais de português, as crianças já ficam a conhecer melhor os fenómenos culturais relacionados com esta língua, por exemplo, no Dia de S. Martinho, as crianças comem castanhas assadas à minha frente pedindo o meu casaco com brilhantes olhares cheios de inocência. O mais importante, ao meu ver, é passar a alegria de aprender uma nova língua e de conhecer uma nova cultura. A ilha de Hengqin acostada a Macau, é justamente como uma criança que anda na escola primária, ainda está a crescer acumulando uma potência indispensável.

Para as pessoas que vivem em Macau, a palavra “Macau” implica dois conceitos, um é a RAEM e outro refere apenas a península de Macau, o pedacinho de território onde se situa a parte mais antiga desta cidade, os fascinantes casinos e luxosos centros de shopping. Nesse sentido, quando se diz “Macau fica ao lado”, denota que, por um lado, as pessoas da Universidade de Macau estão isoladas por uma faixa de águas marinas de uma Macau repleta de casinos, luzes fascinantes; por outro lado, a RAEM fica vizinha à ilha de Hengqin. Hengqin disponibiliza um ambiente sossegado para os estudantes e estudiosos da Universidade de Macau, enquanto Macau retribui seus recursos de língua portuguesa a Hengqin, formando uma relação de cooperação ganha-ganha. Enfim, Macau fica ao lado, de sentido figurativo, de português, a língua de Camões, e revigora-a em terras orientais, contaminando, através da sua dinâmica, as sua vizinhas com este recurso linguístico ímpar.

 

Huang Lin

Doutoranda em Estudos Literários e Interculturais do Departamento de Português da Universidade Macau

28.12.2020

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