AS REFORMAS NO PAPEL E O PAPEL DO MINISTRO
OPINIÃO
MUZANGUENO ALIONE
As reformas no país são necessárias e urgentes, mas não podem ser feitas apenas no papel. Devem ser adaptadas à realidade de Angola e não se limitar a copiar modelos teóricos que não funcionam na prática. É preciso que o papel do ministro seja mais do que assinar documentos ou fazer discursos. Pelo contrário, deve ser um verdadeiro agente de transformação da realidade do país. Não basta copiar modelos teóricos que não funcionam na prática.
Há tempos assisti no YouTube uma gravação do Café Cipra sobre “a indústria e o fomento da empregabilidade”, em que participaram dois ministros e dois gestores de empresas públicas.
Quem os ouve falar fica quase que enfeitiçado com a retórica deles e a capacidade de usar o verbo. Mas nota-se também (com tristeza) que eles ignoram ou desconhecem a realidade do país.
Por exemplo, o ministro do comércio, ao ser questionado sobre a qualidade de ensino, disse que “todos desejam que haja qualidade de ensino em Angola, até essas escolas que vendem peixe carapau (é assim que qualificou os diplomas)”. No fim, passou a ideia de que essa qualidade resultaria de uma maior exigência do mercado, pois enquanto houver espaço para acolher quadros de baixa qualidade, as escolas continuariam a produzir esses.
É um argumento válido, partindo do pressuposto que existe um mercado em Angola. No entanto, na realidade angolana, o Estado é o maior motor da economia e interfere na livre concorrência comercial. Segundo o professor universitário Yuri Quixina (que na óptica do ministro vende peixe carapau), “a economia de mercado não existe em Angola. O mercado é o Estado”. Além disso, existem vários obstáculos ao investimento privado, como a burocracia, a corrupção, a falta de infraestruturas e a instabilidade jurídica.
Então se o Estado é o maior motor da economia, quem deveria exigir qualidade no ensino? É o mercado?
Qual mercado? Dados recentemente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística indicam que quase 80% da população activa actua no mercado informal. Que qualidade de ensino será exigida a um técnico de contabilidade que trabalha num supermercado, ganha 50 mil Kwanzas (menos de 100 euros) e não tem segurança social? Que qualificações serão exigidas?
O ministério das finanças anunciou entre 2018 e 2019 que foram detectados 64 mil funcionários fantasmas. Que qualificações são exigidas para alguém ganhar salário sem trabalhar? O Estado é o maior empregador no país. Que qualidade de ensino vai exigir aos “vendedores de peixe carapau” (diplomas) quando admite em concurso público indivíduos com 2/20 na prova ou com base à corrupção e tráfico de influência?
Na ELP Angola 2050 os consultores estrangeiros que o elaboraram dizem que não há qualidade de educação em Angola e que em 12 anos de estudo temos apenas aproveitamento de 4 anos. Mas diferente dos ministros, esses consultores não atribuíram a culpa ao mercado ou aos vendedores de peixe carapau. Os consultores estrangeiros culpam a má formação dos professores (que também não são qualificados, são mal remunerados e trabalham em péssimas condições), a precariedade das infraestruturas escolares, a falta de rigor no sistema de avaliação das aprendizagens, a corrupção e exclusão social, ou seja, problemas estruturais de base.
Esses exemplos, que não precisam de muita retórica e articulação do verbo para serem observados, mostram que, diferente dos consultores internacionais, os ministros desconhecem a realidade do país. Por isso fazem reformas no papel, como se estivessem nas salas de aulas das escolas de referência internacional que felizmente puderam frequentar.
Precisamos de líderes capazes de definir uma visão estratégica para o país, de mobilizar os recursos necessários para implementar as reformas, de coordenar as diferentes entidades envolvidas no processo, de monitorar e avaliar os resultados alcançados e de prestar contas à sociedade.
Ministros que exercem o seu papel, que saem do gabinete e vão ao terreno, que ouvem as necessidades e as expectativas dos cidadãos, que dialogam com os diferentes actores sociais, que aprendem com as boas práticas e que corrigem os erros. Ministros que não se contentam com o papel, mas que fazem a diferença.